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Autor:
Jayme Buarque de Hollanda
Qualificação:
Diretor geral do INEE - Instituto Nacional de Eficiência Energética.
E-mail:
[email protected]
Data:
01/08/03
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A Califórnia Não é Aqui

Quando a crise energética atingiu a Califórnia, nos Estados Unidos, provocando apagões e seus conseqüentes transtornos para os norte-americanos, ouvi de uma autoridade brasileira do setor elétrico que "A Califórnia não é aqui!". Esta autoriadade explicava que o modelo do setor era muito bem feito e que não faltaria energia no nosso país. Pouco tempo depois, o Brasil também estava enfrentando a mais série crise de energia da sua história, até então. Assim, a Califórnia só não foi aqui porque os consumidores, com alguns incentivos e ameaças de corte de fornecimento aprenderam rapidamente a usar energia de forma mais eficiente e reduziram o consumo em 20%. Mas, esta história, todos conhecem.

O que importa discutir é o dia seguinte das duas situações. Li, na página do Energy Central Professional (http:/pro.energycentral.com), um artigo sobre a situação atual da Califórnia e achei interessante resumir. Ele informa que a situação de suprimento de eletricidade em 2003 é tranqüila, mas, a longo prazo, "um dos assuntos que preocupa é que os investidores não querem arriscar neste setor (...). Na Califórnia mais de 10.000 MW de novos geradores foram cancelados ou adiados em 2001 e outros 9.000 MW em 2002, e é (...) difícil conseguir recursos em Wall Street - para investir -, considerando as incertezas regulatórias e os preços de energia no atacado muito baixos."

Lá, durante a crise, houve mobilização para desenvolver os potenciais de geração distribuída (GD), ou seja, de geração elétrica feita junto ao consumidor final. Consideravam-se os benefícios da GD tanto pela capacidade de injetar energia nova quanto de aumentar a confiabilidade, reduzir os riscos de blackout e de reduzir custos para consumidores, sobretudo em sistemas de co-geração. Afinal, o papel de reserva descentralizada do sistema reduz perdas e reduz a necessidade de linhas de transmissão e distribuição. Não obstante, passada a crise, na medida que a percepção de que não havia riscos, as empresas passaram a trabalhar em um cenário de normalidade ('business as usual') dentro do modelo histórico.

O que mais me chamou a atenção foi que, diante da nova situação de risco, as autoridades regulatórias da Califórnia estão revendo normas que dificultam o desenvolvimento da GD que, hoje, cresce bem abaixo do potencial economicamente viável. A maioria das barreiras, apesar de apresentadas com justificativas técnicas, é, na verdade, reações às mudanças estruturais, pois, na prática, estas iniciativas aportam mudanças fortes para um setor com uma estrutura de funcionamento muito sedimentada. O artigo informa que o tema da GD está sendo visto com grande interesse pelo Departamento de Energia que cria as políticas federais para o setor de eletricidade.

Fico, então, preocupado, com o que foi feito no Brasil, desde a crise, para evitar que o país enfrente novamente dificuldades. Enquanto na Califórnia as redes de gás têm uma capilaridade grande, no Brasil elas ficaram muito restringidas por uma política energética que entendia que o gás, no lugar de ser usado em sistemas eficientes e descentralizados de co-geração, deveria ser queimado em umas poucas grandes centrais.

O Brasil também não considera algumas características especiais que dariam inveja à Califórnia e a todo o mundo como, por exemplo, o potencial de gerar com resíduos de cana-de-açúcar, um combustível disponível em quantidades importantes, mas hoje condenado a ser queimado com baixa eficiência pela indústria sucro-alcooleira apenas porque o preconceito contra a GD nunca aceitou esta forma, taxada de alternativa e raramente valorizada pelo seu potencial de geração.

A GD é uma solução em que todos ganham, mas que para ser implantada precisa apenas de vontade política para vencer resistências culturais na medida que não há dificuldades nem técnicas nem legais. Falta apenas o Brasil acordar. Enquanto lá procuram-se formas eficientes de evitar as novas crises, aqui ainda se insistem nos velhos e antigos modelos nos quais ninguém mais quer investir. Na hora em que algumas autoridades acordarem, talvez reste suspirar, não de alívio, desta vez, mas de resignação e afirmar: "Infelizmente a Califórnia não é aqui".

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