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Autor:
José Damião de Lima Trindade
Qualificação:
Presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (APESP)
E-mail:
[email protected]
Autor:
Antonio José Maffezoli Leite
Qualificação:
Presidente do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e Universidades Públicas do Estado de São Paulo (SINDIPROESP)
E-mail:
[email protected]
Data:
03/05/03
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Previdência Social: Mídia e Mitos

A grande mídia, porta-voz da tese neoliberal do "Estado-mínimo e mercado-máximo", já decidiu qual reforma previdenciária o Governo Federal deve implementar. Eis a receita: tomar por verdadeiro o controvertido e catastrofista pressuposto de que a Previdência estaria "quebrada" e abraçar uma proposta de "reforma", cujo núcleo consiste em cassar o direito dos servidores públicos à aposentadoria integral, remetendo os prejudicados para fundos de complementação. Exatamente como os lobbys dos banqueiros e das empresas privadas de previdência tentaram em vão obter do governo anterior. Exatamente conforme o receituário do FMI.

As entidades representativas dos Advogados Públicos do Estado de São Paulo rompem com a suspeita bajulação da grande mídia e trazem à ponderação e à discussão questões indispensáveis para um debate efetivamente sério sobre a Reforma Previdenciária.

CAUSAS ECONÔMICAS - A estagnação econômica desde a década de 80, a recessão induzida e a automação (reestruturação) socialmente irresponsável da produção (com desemprego para muitos e lucros para poucos) expulsaram milhões de trabalhadores do mercado de trabalho ou os empurraram para a informalidade - aí incluídos perto de um milhão de servidores públicos demitidos para dar forma ao Estado "mínimo".

Resultado: progressiva redução da quantidade dos contribuintes e do montante das contribuições para a Previdência Social.

Pensar uma reforma meramente fiscal da Previdência com base neste quadro econômico patológico só faria sentido em cérebros que já se conformaram com a recessão econômica como fato natural, inalterável pela ação do Estado - bem ao contrário do programa econômico defendido pelo partido do Presidente da República em campanha.

A retomada do crescimento, com a abertura de milhões de novos postos de trabalho, inclusive no serviço público, trará imediato aumento da arrecadação fiscal em todos os níveis. Desprezar esse condicionamento macroeconômico no diagnóstico da Previdência significa atribuir a ela a responsabilidade por uma crise de receitas que foi gerada fora dela e, então, torna-se sedutor o remédio simplório dos neoliberais: agir nas conseqüências e não nas causas - isto é, cassar a aposentadoria integral dos servidores. Os banqueiros, únicos beneficiários desse malabarismo, já esfregam as mãos de satisfação ante a perspectiva de ampliação do hoje raquítico mercado da previdência privada.

CAUSAS POLÍTICAS - Adiante-se desde logo que altíssimos valores do montante arrecadado pela Previdência foram, no passado, desviados para incontáveis obras dos governos federal e estaduais, o que, por óbvio, gerou um enorme desfalque no sistema.

Esse "buraco" foi em muito aumentado em razão de o sistema em vigor não imputar ao empregador público qualquer contribuição à Previdência, como é exigido do empregador privado.

Portanto, ao contrário do que se apregoa, não foi a Previdência que quebrou o Brasil, mas a irresponsabilidade e a imprevidência de governos anteriores é que podem, eventualmente, ter quebrado a Previdência. Há, nesse campo, muito a apurar, para se responsabilizar seus autores - que não são, nem foram, os servidores.

CAUSAS CRIMINAIS - Estimativas oficiais indicam que, para cada real arrecadado, quase outro real é sonegado, inclusive na Previdência - sob complacência de sucessivos governantes, nas três esferas da Federação.

Sem, primeiro, atacar-se a sonegação fiscal com decisão e método, envolvendo-se a sociedade e punindo-se sistematicamente os sonegadores, soará insincera qualquer reforma da Previdência, ainda mais se implicar decepar direitos ou expectativas de direitos. Assim como soará não convincente se, antes, o Estado não for aparelhado adequadamente para cobrar de modo eficiente os bilhões de reais de dívidas fiscais dos empresários que se apropriam indevidamente das contribuições previdenciárias de seus empregados.

Outrossim, nenhuma proposta de reforma previdenciária convencerá a sociedade, se não for precedida de rigoroso levantamento das inumeráveis fraudes que lesaram e lesam a Previdência, a começar pelas falsas aposentadorias e pelos desfalques astronômicos, até agora com escassa recuperação de valores.

CONFUSÕES PROPOSITAIS - Nas últimas décadas, nossos legisladores decidiram, acertadamente, conceder aposentadorias a milhões de brasileiros pobres que jamais haviam contribuído para com a Previdência Social. Foi o caso, dentre outros, dos trabalhadores rurais e dos idosos com mais de 70 anos.

Mas essa opção - reparadora e justíssima - teve e tem um preço, que deveria ser custeado com naturalidade civilizatória pela arrecadação tributária, mediante dotações próprias do Tesouro, em vez de se onerar e culpar de "deficitário" o fundo previdenciário. Considerar esse brutal custo acrescido (que não tem a contrapartida de receitas prévias) como "despesa" da Previdência (e não do Tesouro), é outro modo de "demonstrar" a suposta inviabilidade do sistema previdenciário atual.

Da mesma forma, lança-se mão da confusão entre Previdência e Seguridade. A Seguridade Social, patamar mínimo de civilização solidária, compreende a garantia, para todos, de saúde, assistência social e previdência (pensões e aposentadorias). Mas só a Previdência é geradora de receitas por meio das contribuições recolhidas compulsoriamente sobre a remuneração dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada.

A saúde e a assistência social são mantidas pelo Tesouro, como um encargo aceito pela sociedade. Confundir as duas despesas, isto é, atribuir à Previdência todo o "déficit" da Seguridade, configura manobra tão desonesta quanto primária - mas, certamente, conveniente aos empenhados na demolição do sistema previdenciário.

Retorna também o "argumento" de que a aposentadoria integral do servidor público constitui um "privilégio", já que a aposentadoria dos trabalhadores privados foi limitada, à força, ao teto de míseros R$ 1.500,00.

Essa solução de nivelar por baixo, socializando a miséria, não serve ao País.

Em vez de se restituir dignidade (remuneração integral) à aposentadoria dos trabalhadores privados, a pretensão é reduzir também à indignidade (o pretendido teto) a aposentadoria dos servidores públicos.

ESPECIFICIDADES DO SERVIDOR - O servidor público efetivo é um trabalhador diferente dos demais, possui atribuições e regime jurídico diversos de outros trabalhadores. A ele cabe, em última análise, a consecução dos fins do Estado, de que todos se beneficiam.

Por isso, a Constituição Federal, as Constituições estaduais e as leis infraconstitucionais os tratam com rigor superior ao dos demais trabalhadores, sujeitando-os a uma série de responsabilidades e limitações, dentre outras: vedação de participarem de licitações públicas, proibição de acumularem cargos (salvo reduzidas exceções), impedimento de advogarem privadamente (caso das carreiras jurídicas), impedimento de serem titulares de empresas privadas etc., além dos riscos e tensões inerentes a diversas carreiras (militares, bombeiros, policiais, professores, agentes penitenciários, profissionais da saúde etc.).

No tocante à aposentadoria, a situação também é diversa - e mais exigente. Para fazer jus à aposentadoria integral, o servidor efetivo federal contribui com uma alíquota sobre a totalidade de sua remuneração e não sobre algum "teto previdenciário". Mesmo em casos como o do Estado de São Paulo, em que a contribuição dos servidores efetivos seria apenas para fins de pensões e assistência médica, a retenção se dá mediante índices incidentes sobre a totalidade das remunerações, e não sobre um teto-limite, diversamente do que ocorre com os trabalhadores da iniciativa privada.

ABERRAÇÕES DO PASSADO - Algumas situações excepcionais e reprováveis que existiram no passado, oportunisticamente divulgadas como se ainda estivessem em vigor, foram suprimidas em definitivo pela Emenda Constitucional n. 20, de 1998. Assim, no sistema já em vigor, apenas pode ser concedida a aposentadoria ao servidor se ele comprovar tempo de contribuição (art. 40, parágrafo 1º, inciso III da CF); ficou expressamente vedada qualquer possibilidade de contagem de tempo de contribuição fictício (art. 40, parágrafo 10° da CF); foi eliminada a possibilidade de o valor da contribuição ser incompatível com o da aposentadoria do servidor, pois, para se aposentar com a última remuneração, o servidor deverá cumprir um tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e ter contribuído por, pelo menos, cinco anos no cargo efetivo em que aposentar (art. 40, parágrafo 1°, inciso III da CF). Mais ainda: a mesma EC-20 introduziu idade mínima de aposentadoria para os servidores (60 anos para homens e 55 anos para mulheres), eliminando aposentadorias precoces.

Restariam outras aberrações? Talvez sim, mas agora em número reduzido e bem localizado. A imprensa cogita de algumas dezenas de aposentadorias de valores exorbitantes e irregulares. Muito simples: porque não se apura e coíbe as eventuais ilegalidades, em vez de deixá-las pairando como sombra sobre o conjunto dos servidores?

A DEMOLIÇÃO - Ingressar hoje no serviço público implica ônus e limitações progressivas (agravadas em diversas carreiras, como mencionado). E, em face da brutal compressão salarial das últimas décadas (maior no setor público do que na iniciativa privada), praticamente só remanesce como atrativo ao ingresso/permanência no serviço público a possibilidade de aposentadoria sem rebaixamento abrupto e humilhante do padrão de vida na velhice - já que os servidores não levantarão um centavo de FGTS ao se aposentarem. Suprimir a aposentadoria integral dos servidores equivale a eliminar de vez a possibilidade de quadros qualificados e motivados nele ingressarem ou nele permanecerem, o que acelerará a deterioração dramática da qualidade dos já insuficientes serviços prestados à população e enfraquecerá a defesa do patrimônio público e do interesse social - numa palavra, seria a consumação do "Estado mínimo-mercado máximo" sonhada pelos apetites neoliberais.

Em especial, os quadros de maior escolarização aposentar-se-ão às pressas, se puderem, ou migrarão para a iniciativa privada, que lhes acena com salários melhores. Quanto custará ao Estado, em tempo e em valores, a formação de outra geração de servidores preparados? Aliás, o simples ressurgimento da ameaça à aposentadoria integral já gerou esta conseqüência inquietante: milhares de servidores já se precipitaram, entre janeiro e fevereiro, a requerer a contagem de seu tempo de serviço para se aposentarem - exatamente como ocorreu em 1995 e em 1998. Isto, por si só, já aumentará a curto prazo a despesa da Previdência Social, o que dá a medida da irresponsabilidade dos apressados proponentes dessa reforma mal-pensada - a menos que o propósito deles seja esse mesmo: agravar artificialmente o problema para justificar a demolição neoliberal acenada.

A "SOLUÇÃO" - Unificar os sistemas previdenciários, fixar teto para as aposentadorias dos servidores e instituir fundos de complementação custeados pelos servidores e pelos governos - eis a proposta "salvadora" dos neoliberais. Mas ela acarretará redução imediata da receita previdenciária, eis que, obviamente, cada servidor passará a contribuir não mais sobre a totalidade da remuneração, mas apenas sobre o teto. Se hoje a União arrecada anualmente cerca de R$ 4,5 bilhões de reais a título de contribuição previdenciária dos servidores, estima-se que, com essa "solução", essa receita despencará entre R$ 1,7 a 2,5 bilhões anuais.

Além da perda da receita, haverá também aumento da despesa: milhares de servidores que há décadas vêm contribuindo sobre a totalidade de sua remuneração, certamente já recolheram montantes que ultrapassam os valores que perceberiam pelo teto das novas aposentadorias. É claro que baterão imediatamente às portas do Poder Judiciário para obter da União, dos Estados e dos Municípios o ressarcimento daquilo que pagaram a maior. Mais ainda: se os fundos de complementação incluírem os atuais servidores ainda não-aposentados, os governos precisarão, logo de partida, providenciar aportes bilionários para cobrir o passivo previdenciário acumulado que nunca depositaram - caso contrário, os fundos já nasceriam "quebrados". Cálculos confiáveis indicam que a unificação dos sistemas geraria um custo de adequação superior ao alegado desequilíbrio atual. De onde sairão esses recursos, já que o próprio orçamento deste ano já precisou ser amputado? Por fim: de onde sairão os recursos para os Municípios, Estados e a própria União honrarem sua contrapartida no financiamento regular dos fundos a serem criados? A verdade é que a "solução" neoliberal para a Previdência brasileira não passa de cópia maquiada dos modelos implantados pela ditadura chilena e pelo fracassado governo argentino - modelos que já quebraram.

CREDIBILIDADE - Em suma: tomar por falido o atual modelo previdenciário e substituí-lo pela fórmula neoliberal proposta é, para dizer o mínimo, tecnicamente polêmico, administrativamente temerário e poderá mostrar-se economicamente desastroso para o país - para não falar do verdadeiro logro que representaria para os atuais servidores.

Especialistas da maior competência apresentam dados e números que se chocam com a avaliação catastrofista do agrado da grande mídia. Os servidores, assim como todos os cidadãos, contribuíram e continuam contribuindo para a Previdência - não há como escaparem, as retenções são feitas sobre os salários. Portanto, o governo federal arrecadou, desde a criação do regime previdenciário, um enorme montante pago por várias gerações de servidores. Para se saber se há ou houve "déficit" no sistema próprio dos servidores, dever-se-ia levantar o valor de todas as contribuições recolhidas, atualizar o montante com a aplicação de juros e correção monetária (pois o valor arrecadado foi ou deveria ter sido capitalizado) e, desse resultado, subtrair todo o valor despendido a título de pagamento das aposentadorias e pensões dos servidores. Apenas esse critério é idôneo para a apuração do saldo (positivo ou negativo) realmente existente no sistema.

Só após uma séria, sistemática e transparente auditoria PÚBLICA, com a participação da sociedade civil, é que se poderá chegar a um balanço realista e sustentável, capaz de conferir credibilidade social a um projeto de reforma. Sem isso, qualquer alteração será precipitada, meramente ideológica e correrá o risco de desmoralizar-se em pouco tempo - levando consigo, de roldão, o governo que cair nessa armadilha neoliberal.

Os servidores públicos do Brasil queremos contribuir nesta discussão, não só porque colocam-nos na mira para sermos abatidos, mas também porque conhecemos muito melhor do que a grande mídia as deficiências e virtudes da máquina administrativa pública. E, acima de tudo, porque somos patriotas, orgulhamo-nos de estar a serviço de nosso próprio povo, e não do capital financeiro, que só se dará por satisfeito quando nos reduzir a todos de joelhos!


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