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Autor:
Ruy Martins Altenfelder Silva
Qualificação:
Presidente do Instituto Roberto Simonsen.
E-mail:
[email protected]
Data:
11/10/03
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As Estrelas do Comissário

O fracasso da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, no México, é muito coerente com as ironias do comissário Europeu de Agricultura, Franz Fischler, nos embates que antecederam ao encontro, sobre a posição do Brasil quanto aos subsídios agrícolas. Suas declarações soaram como profundo desrespeito aos 22 milhões de habitantes do País que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), vivem na indigência. São seres humanos sem condições sequer de consumir o mínimo indispensável de 2.200 calorias diárias.

Assim, reivindicar nos fóruns internacionais a redução de subsídios e do protecionismo contra exportações agrícolas das nações em desenvolvimento, conforme faz há alguns anos a diplomacia econômica brasileira, não é atitude surrealista ou de ficção, como tentou caracterizá-la o sr. Fischler, endossado pelo comissário europeu do Comércio, Pascal Lamy, e o representante de Comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick: "Se escolherem (o Brasil) continuar em sua odisséia no espaço, não chegarão às estrelas, não chegarão à lua e terminarão com as mãos vazias". Ser realista significaria, então, simplesmente concordar com a lógica do colonialismo e do imperialismo anacrônico dos anos 60, de tornar os países pobres exportadores de commodities a preços aviltados e importadores de bens e tecnologia com alto valor agregado?

Os argumentos dos comissários do Hemisfério Norte não resistem à lógica e, muito menos, às análises de respeitados organismos internacionais. O Banco Mundial (Bird) — cuja sede é em Washington DC, e não na Etiópia — acaba de divulgar, conforme amplamente noticiado, o documento Perspectivas da Economia Global, que é taxativo: a eliminação do tratamento discriminatório das exportações dos países em desenvolvimento tiraria da pobreza 144 milhões de pessoas em todo o mundo (dentre eles, com certeza, estaria parcela expressiva dos indigentes do Brasil e demais nações latino-americanas). O estudo demonstra que os países industrializados cobram, em média, cerca de 1% sobre as manufaturas importadas entre si, mas 2% da América Latina, 5% do Leste da Ásia, 6% do Oriente Médio e 8% do Sul da Ásia. Além disso, os subsídios agrícolas europeus e norte-americanos são superiores a US$ 800 bilhões, somando-se a numerosas barreiras tarifárias e não-tarifárias.

Em outro estudo, a Oxfam International — instituição sediada em Londres, presente em mais de 100 países e voltada à busca de soluções para a pobreza, o sofrimento humano e a injustiça — mostra que as tarifas de importação impostas pelas nações ricas às pobres são, em média, cinco vezes maiores. Somente a extinção de barreiras no setor têxtil possibilitaria a criação de 27 milhões de empregos nos países em desenvolvimento. Produtos da França pagam nos Estados Unidos tarifas 14 vezes menores do que os de Bangladesh, onde subsistem 41 milhões de miseráveis. Estes e outros problemas enfrentados pelos países em desenvolvimento perpetuam as desigualdades regionais. As nações pobres, onde vivem 40% da população mundial, contribuem com apenas 0,3 centavos para cada dólar movimentado com as exportações no mundo.

Irreal, portanto, é Ignorar a relação de causa/efeito entre a pobreza de milhões de pessoas e a prática de subsídios, barreiras protecionistas e tratamento privilegiado mútuo no intercâmbio entre as nações ricas. Esta verdade, escancarada pelos estudos da economia mundial, não exime totalmente de culpa as nações em desenvolvimento, que, como o Brasil, cometeram numerosos equívocos na condução de suas própria história. Um erro, porém, não justifica o outro.

Ironias certamente não podem esconder a realidade. Atribuir ao objetivo lícito de um país, de saciar a fome de seus filhos, a pecha de devaneio irresponsável é desdenhar a exclusão social e dos seus tristes protagonistas. Taxar de odisséia no espaço a busca de justiça e comparar o onirismo de chegar às estrelas ao concreto anseio de desenvolvimento de um povo são visões cartesianas de quem sempre deu as costas ao Cruzeiro do Sul.

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