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Autor:
Everton P.S. Gonçalves
Qualificação:
Risk-manager do Banco BNL do Brasil S.A.
E-Mail
[email protected]
Data:
11/12/03
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As (Des)Amarras das Taxas de Juros

O ritmo de queda dos juros reais, com as sucessivas reduções da taxa básica, já produz inquietação. Embora haja convergência das expectativas inflacionárias às metas, a preocupação surge como fruto do risco de que a recuperação da atividade econômica seja mais rápida do que o crescimento da oferta agregada. Isto certamente implicaria inflação de demanda. Para alguns analistas, a rápida expansão da economia em um ritmo mais acelerado do que o produto potencial, que estaria crescendo no máximo 3,50%, pode obrigar um novo aperto monetário em um período não tão longínquo. Parece incrível, mas mal se gera um ciclo expansionista, já se pensa em abortá-lo!

A taxa de equilíbrio ou neutra, como prefere Alan Blinder, ao equilibrar o produto efetivo ao potencial, garantiria a estabilidade da inflação. Juros reais inferiores poderiam imprimir uma recuperação do nível de atividades desbalanceada e desencadear pressões inflacionárias. Logicamente, essa taxa não seria fixa ao longo do tempo, dependendo, dentre outros elementos, da política fiscal e da taxa de câmbio. Além disso, seria altamente sensível a choques exógenos.

É inegável que o êxito no combate à inflação tem reduzido os juros reais a um nível próximo do patamar capaz de garantir a estabilidade dos preços e, simultaneamente, uma trajetória de crescimento satisfatória. Uma taxa de juros abaixo desse nível produziria incertezas associadas aos mecanismos de transmissão da política monetária muito maiores. Assim, situações de incerteza como as atuais recomendariam postura conservadora por parte do Banco Central. Segundo ainda Alan Blinder, as autoridades deveriam optar pelo príncipio de Brainard: "Quando não se sabe os efeitos do que se faz, é melhor agir com cautela".

A argumentação é amparada pelo próprio presidente do Banco Central, que sublinhou que a taxa real ex-ante estaria muito próxima a 10,5%, nível vigente durante o início de 2000, quando a economia pôde crescer ao ritmo de 4% ao ano. Taxas similares às vigentes, entre o final de 1999 e o primeiro trimestre de 2001, permitiram que tanto a produção industrial como a formação bruta de capital apresentassem taxas de crescimentos expressivas. Mais ainda, embora com uma resposta um pouco mais lenta, o produto potencial respondeu positivamente aos estímulos da atividade econômica. Ainda que representasse um breve período, a experiência sugere que a evolução esperada da Selic, espelhada no mercado futuro de juros da BM&F, para os próximos meses pode garantir crescimento considerável e compatível com a estabilidade de preços. Vale a pena destacar que a estrutura a termo precifica, ainda que menores, novos cortes na Selic. O juro real está mesmo próximo da taxa de equilíbrio?

Apesar dos indícios, é muito difícil afirmar. Não só porque é difícil aceitar uma taxa real de juros de 10% como de equilíbrio, mas também porque as contas externas apresentam situação mais confortável. De qualquer forma, há risco de que uma queda mais acelerada possa gerar excesso de demanda sobre a oferta agregada e um gargalo nas contas externas. O piso da taxa de juros é, assim, definido pelos obstáculos que restringem a poupança disponível ao investimento. Se a redução da taxa de juros gerar excesso de investimento sobre a poupança, a deficiência deveria ser coberta pela redução do déficit público e/ou pelo aumento da poupança externa. Com as limitações à utilização de recursos externos, a queda mais rápida na taxa de juros vai depender fundamentalmente da política fiscal.

Para se ter uma noção do tamanho do problema, entre os anos de 1996-2001, a despoupança pública contribuiu negativamente com 11,7% da poupança total. Até setembro, apesar do enorme esforço fiscal para obter um superávit primário de 5,08% do PIB, o déficit nominal do setor público representou 5,06% do PIB. As elevadas taxas de juros foram responsáveis por nada menos que 10,1% do PIB em despesas financeiras.

As taxas de juros são elevadas por causa dos elevados prêmios de risco exigidos pelos investidores na rolagem da dívida pública interna. Mas por que não têm confiança? Apesar de em termos comparativos, o tamanho da dívida não ser tão elevado, o ritmo do seu crescimento desponta como principal motivo para a desconfiança. Como se pudesse ser diferente com taxas de juros reais da ordem de 10% ao ano em um cenário de crescimento econômico pífio. É um raciocínio puramente tautológico que prende a economia numa armadilha de confiança, como há muito tempo diagnosticou o economista Paul Krugman. A taxa de juros elevada se impõe como um grande entrave à melhoria nos indicadores de solvência tão importantes nas avaliações de rating das agências de risco.

Se não há dúvidas quanto as limitações para a queda na taxa real de juros, a forte queda na absorção doméstica verificada nos últimos meses não autoriza imputar sobre a demanda a culpa pelo estouro das metas inflacionárias nos últimos anos. A inflação parece, sim, ser fundamentalmente desencadeada pela desvalorização cambial, como reflexo da deterioração de risco que por sua vez é reflexo das taxas de juros elevadas, do baixo crescimento econômico e das vulnerabilidades das contas externas. Uma maior taxa real de juros é necessária para desaquecer a economia e combater o aumento do coeficiente de passthrough da desvalorização cambial.

Recentemente uma ex-autoridade monetária, ao afirmar que nem sob tortura o Banco Central reconheceria que a determinação da taxa Selic seria regida pela arbitragem externa e não pelas metas da inflacão, atingiu o epicentro do problema. A rápida convergência da taxa de inflação às metas deveu-se não só à forte queda na demanda interna como reflexo do aperto fiscal-monetário, mas principalmente pela apreciação do real por causa da maior disposição ao risco dos investidores, da ampla liquidez no mercado internacional e da dissipação das incertezas políticas.

Mais ainda, o cenário favorável tem permitido que a baixa volatilidade da taxa de câmbio favoreça os investimentos. A estabilidade cambial é uma condição necessária para que haja a conjugação entre crescimento e inflação baixa. A perpetuação do círculo virtuoso da estratégia gradualista está associado à manutenção desse quadro e à ausência de externalidades negativas, caso contrário teremos novamente mais um "vôo de galinha", como os tantos que já tivemos.

Mesmo com o regime de metas inflacionárias e o câmbio flutuante, a taxa de juros mantém o dualismo da época do câmbio administrado, servindo não só para o controle da demanda agregada, mas também para garantir o equilíbrio no mercado de câmbio. Por causa da arbitragem, o movimento na taxa de juros será reflexo das oscilações na aversão ao risco soberano.

Uma redução mais abrupta poderá levar a uma depreciação cambial excessiva que fatalmente comprometerá as metas inflacionárias. Esse nó gordio entre juros e câmbio é que deve ser cortado. Sem isso dificilmente a taxa real de juro de equilíbrio poderá cair expressivamente. Mas como fazê-lo? Apostando mais fichas no jogo de confiança, muitos analistas destacam que a implantação da conversibilidade do real poderia ajudar a derrubar o piso na taxa de juros real. O impedimento de qualquer restrição à troca de moeda estrangeira por reais e a impossibilidade legal do Banco Central promover o controle de capitais eliminariam o risco de conversibilidade e diminuiriam o risco soberano.

A idéia é atraente, pois a entrada de novos agentes poderia ampliar o mercado de câmbio o que diminuiria a volatilidade do real. Historicamente, porém, o risco de conversibilidade tem flutuado em valores muito baixos. O risco de conversibilidade só se exacerbou nas crises cambiais detonadas pela súbita deterioração da percepção do risco de crédito. O livre acesso ao mercado cambial, por si só, não confere reserva de valor ao real e muito menos garantirá uma melhoria nas condições de solvabilidade do país.

Pelo contrário nas crises, o maior acesso ao mercado cambial muito provavelmente amplificaria a fuga de capitais e a desestabilização da economia. As reservas disponíveis pelo Banco Central são ínfimas quando comparadas aos ativos domésticos. Para se ter uma idéia, hoje as reservas livres devem corresponder cerca de 6% do agregado monetário M4, o que caracteriza uma enorme demanda potencial por dólares que pode se representar enormes dificuldades na rolagem do endividamento interno. A crise de confiança do segundo semestre de 2002 foi um exemplo crasso dessa ameaça.

Em relatório recente, o economista Kenneth Rogoff, do próprio FMI apontou que a abertura financeira eleva a instabilidade dos países, além de não estabelecer uma conexão clara e empiricamente robusta com o crescimento econômico. Ao invés de aprofundar a abertura da conta de capitais, talvez não fosse mais apropriado seguir o exemplo de alguns países asiáticos, aperfeiçoando os controles cambiais, preferencialmente os de curto prazo, e a regulamentação dos movimentos de capitais? Com isso, investimento e poupança seriam favorecidos pela queda na volatilidade cambial e pelo espaço maior para a queda da taxa de juros.

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