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Autor:
Ruy Altenfelder
Qualificação:
Presidente do Instituto Roberto Simonsen (Fiesp)
E-Mail
[email protected]
Data:
12/12/03
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Muito Além dos Impostos

Numerosas nações, dentre elas as desenvolvidas, debatem-se para conciliar o atendimento simultâneo a duas prioridades antagônicas: a solução dos desequilíbrios das contas (externas e/ou internas) e a promoção de crescimento econômico mais substantivo. Neste cenário, a disputa pelo fluxo de capital no fluido mercado globalizado torna-se mais acirrada, suscitando interessante jogo cambial entre as principais economias. É inegável que o crescente descompasso do setor público dos Estados Unidos - que saltam de um superávit equivalente a 0,87% do PIB, no final de 2000, para iminente déficit de 4% em 2003 - está diretamente associado a essa nova situação.

É necessário ficar alerta, em especial em países emergentes como o Brasil, que, além de igualmente enfrentarem o mesmo dilema "fluxo de caixa/crescimento econômico", ainda têm forte dependência da poupança externa para a realização de investimentos produtivos. O próprio Estado brasileiro, desde a grave crise fiscal dos anos 80, encarregou-se de debilitar a poupança interna e passou a recorrer cada vez mais, via impostos e títulos públicos, ao dinheiro da iniciativa privada para socorrer os déficits internos e o balanço de pagamentos. Esta fragilidade deixa o País muito exposto em conjunturas como a que se delineia no fluxo internacional de capitais.

A nova situação internacional, cuja percepção nem sempre parece tão clara, precisa ser considerada na reforma tributária, que ganha ampliado contexto e importância estratégica na presente conjuntura mundial. Por quê? Esta é a pergunta que o Governo Federal e Parlamento já deviam ter feito e começado a responder com estudos técnicos aprofundados, capazes de embasar o projeto final. É preciso foco, a começar pelas razões concretas de a Nação necessitar de uma reforma tributária.

O bom senso e a conjuntura econômica nacional e internacional indicam com clareza os motivos: desonerar a produção e oferecer mais competitividade e condições de crescimento ao parque empresarial, pois o sistema de tributos deve ser o motor e não o freio da economia; reduzir (muito) a dependência dos investimentos produtivos da poupança externa e do dinheiro comprometido com a rolagem da dívida pública e, portanto, contaminado por juros elevadíssimos; diminuir a fragilidade do País ao fluxo do capital especulativo, criando forte blindagem, com grande crescimento das exportações e atração crescente de investimentos produtivos; gerar receita tributária suficiente para o custeio e investimentos do Estado, evitando a retomada do déficit orçamentário.

Em síntese, a reforma tributária é a oportunidade histórica de mudar os parâmetros e critérios com que o mundo analisa as possibilidades e tendências da economia brasileira. Como nação, temos muito mais potencial, produção, recursos naturais, tecnologia, inteligência e capacidade do que transparece no índice do risco-país. Este número, frio, muitas vezes subjetivo e baseado em variáveis complexas, tem nos colocado no purgatório (e comemoramos muito quando isto acontece, como agora...) ou no inferno, apenas com base na possibilidade aleatória de nos tornarmos inadimplentes.

O sistema de tributos tem de fortalecer e fazer aflorar o Brasil que trabalha, produz, exporta, cria empregos; não o Brasil que faz "papagaios" com títulos públicos e impostos escorchantes para rolar suas dívidas. Não podemos canalizar ao setor público praticamente todo o dinheiro disponível para investimentos. Não devemos estimular a guerra fiscal, ou seja, são necessárias normas equânimes nacionalmente. Precisamos de responsabilidade e critério fiscal, o que se alcança com a extinção dos ralos do dinheiro público, por intermédio da reforma da Previdência e com essencial lição de casa ainda não realizada: um grande orçamento da União, estados e municípios, com precisa distribuição de atribuições, evitando-se a superposição de programas e melhorando a produtividade do setor público. Este exercício de gestão possibilitaria ampliar as ações do Estado nas áreas sociais prioritárias, bem como os investimentos em infra-estrutura e fomento ainda sob sua responsabilidade, com muito menos dinheiro do que se gasta hoje.

O projeto de reforma tributária aprovado na Câmara dos Deputados é a antítese de tudo isso. Seu trâmite no Senado, ameaçado pelas pressões em torno da manutenção da guerra fiscal, não apresentou avanços no texto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça. Com otimismo, pode-se esperar a aprovação este ano, com validade para 2004, de itens menos importantes (a matéria, é preciso lembrar, deverá voltar à Câmara e precisa ser aprovada, por maioria absoluta e em dois turnos, nas duas casas do Congresso). Há até mesmo o risco de se transferir para uma revisão tributária em 2007, a apreciação dos "pontos polêmicos" — leia-se: os que, de fato, representam mudanças estruturais.

Por enquanto, a emenda constitucional em trâmite aumenta a carga de tributos (alíquota do ICMS saltando de 18% para 22%; Cofins maior sobre importação de bens; Cide ampliada para repasse aos Estados; IPVA mais oneroso; progressividade do ITBI; e majoração do imposto sobre heranças e doações). Além disso, estimula a guerra fiscal, em particular com o estabelecimento da cobrança do ICMS no destino e não na origem, insensatez inédita no mundo em termos de tributos relativos ao valor agregado. Não bastasse tudo isso, o governo ainda vai onerar a pequena e média empresa com aumento de 157% da Cofins para as prestadoras de serviços, conforme medida provisória editada no início de novembro. Esta "canetada" beneficia apenas as empresas exportadoras e pode provocar numerosas demissões de trabalhadores.

Em 1776, Adam Smith observava "não existir arte que um governo aprenda de outro com maior rapidez do que a de extrair dinheiro do bolso da população". É inconcebível que, 227 anos depois, o Brasil contemporâneo, mantendo carga tributária equivalente a 37% do PIB, índice sem paralelo em países com renda per capita similar, continue patinando num dilema filosófico do iluminismo europeu. Afinal, a reforma tributária passa a transcender a importante meta de reordenamento da arrecadação de impostos e tributos, tornando-se, também, um suporte estratégico ao crescimento, competitividade e fortalecimento da economia brasileira para enfrentar a turbulência crescente do mercado internacional.

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