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Autor:
Nélson Machado
Qualificação:
Consultor em Comunicação e Diretor da Novidéia Criação & Marketing.
E-mail:
[email protected]
Data:
17/02/00
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Traições nos Programas de (in)Fidelidade

Serás fiel à minha marca e não cobiçarás a oferta do próximo. Taí, sintetizado numa frase solenemente puxada pro matrimonial, o grande sonho de fabricantes, empresas de serviços e varejistas que buscam, através de Programas de Fidelidade, levar os consumidores aos pés do altar para um longo e leal casamento.

Claro que apesar de o patrocinador ser um partidão e dar um premiozinho aqui, outro ali, o triste fato é que a sua cara metade muitas vezes se manda em plena lua-de-mel para conjugar com alegria o verbo: eu infidelizo, tu infidelizas, ele, etc.

Verdade seja dita: sua excelência o consumidor é fugidio por natureza. Adora apaixonar-se pela primeira oferta que passa à sua frente toda cheirosa, gostosa, provocante. Daí espetar um belo par de chifres em quem até já lhe tinha presenteado com uma carteirinha de fidelidade, é um pulo.

E, com isso, não mais do que repente, lá vai pro espaço o simbólico e sonhado triângulo amoroso repleto de expectativas de amor, carinho e reciprocidade entre consumidor-marca-produto.

O consumidor de hoje tem plena consciência de seu poder e parece estar se vingando de tantos anos com pouquíssimas opções de produtos, marcas e serviços de qualidade - características dos tempos em que o Brasil estava reinventando o capitalismo sem riscos, sem competição e sem valorização do consumidor. Nos dias atuais, seguindo a sábia filosofia caminhoneira que diz "Na subida você me aperta, na descida nóis acerta", ele sabe que quem manda é ele.

Esse relacionamento movediço e traiçoeiro, faz parte do jogo. Afinal, como diria Bill Clinton, a fidelidade não é uma qualidade humana. Vale dizer: devemos aceitar com serenidade o que a macarrônica novela das nove, diria: é tutti cornutti. Pense comigo: se gente não consegue ser fiel a gente, imagine ser fiel a produtos e marcas. Vã esperança.

Parece que eu estou falando contra, mas não estou. Sou um fã dos Programas de Fidelidade mas não do jeito que estão sendo praticados. De cara percebe-se uma anti-qualidade em quase todos: são mãos-de-vaca, exigindo somas absurdas de pontos (e de compras) pra ganhar alguma coisinha de valor e utilidade. Veja o exemplo de um barzinho da moda aqui em S.Paulo: no seu Programa de Fidelidade o cliente fiel poderá (será?) ganhar como presente à sua lealdade uma bela viagem à Europa. Legalzinho, né? Espere o resto: pra ganhar, basta acumular alguns pontinhos que, em grana, equivalem a gastar aproximadamente R$ 8 mil em bolinhos de bacalhau, tremoços, pastéis de Blém (já com a pronúncia), e outros lusitanos acepipes, pois o tal establecimento é um barzinho temático - dos nossos queridos (meus avós) portugueses. Pois báim: se tal quantia fosse detonada não nos comes, mas só nos bebes, exemplo, em cervejas, o freguês teria de enxugar goela abaixo algo próximo de 4 mil latinhas! Detalhe da lealdade do barzinho para com seu cliente fiel: a viagem que ele "dá" em troca de R$ 8 mil consumidos, custa em qualquer agência de viagem uns R$ 2 mil, sem pechinchar.

Você acha que o consumidor deixará de pular a cerca contra quem lhe dá essas bicicletadas? Claro que não. Como se vê, o culpado da coisa não é o Programa de Fidelidade mas quem o está pilotando.

E tem mais: fora a exigência de pontos estratosféricos outros aspectos estão desossando essa ação promocional: a preguiça de inovar, o marasmo, a rotina mortal do deixa-como-está-pra-ver-como-é-que-fica.

O consumidor é interesseiro e, se não estiver emocionalmente envolvido, bem amarrado numa teia de vantagens entrelaçadas com novidades e surpresas, a traição ganha força. Ou seja: embora a semente corneante exista, ela só crescerá se o patrocinador do Programa bobear e deixar a ação perder o pique.

E isso acontece toda hora, principalmente entre concorrentes diretíssimos, como os varejistas. Embora nessas empresas os Programas geralmente sejam dirigidos por marketeiros top de linha, há uma tendência de se pensar confortavelmente que, uma vez entregue a carteirinha ao fiel, ele já está fidelizado.

Ledo engano, pois justamente o que parece o fim, nada mais é do que o começo. Eu mesmo já tive a chance de ver no check out de uma drogaria a cliente apresentando a carteirinha de fidelidade da outra rede. E olha que a mocinha do caixa quase aceita sem perceber que aquela carteirinha era do adversário.

Isso sinaliza a indiferenciação, o igualitarismo, o" me to", a pasteurização do evento promocional que, assim, perde vida por falta daquilo que é seu oxigênio: a assimetria.

Resultados disso:

  • 1- o que era novidade virou velhidade; os bocejos invadem impiedosamente os Programas.
  • 2- o cliente torna-se infiel a todos, ou, se preferir, fiel a nenhum.
  • 3- a ação promocional perde frescor e impacto, gerando o inevitável efeito broxante.

E agora a pergunta difícil: como resgatar o dinamismo, o envolvimento, o barulho dos Programas de Fidelidade precocemente envelhecidos?

Taí um belo desafio criativo pois, de uma forma ou de outra, todos ainda têm os cordões umbilicais presos às antigas origens da idéia: as empresas aéreas americanas que, jogadas num tremendo vácuo pela guerra de tarifas, inventaram bônus aos passageiros em troca das milhagens voadas.

Sensatamente, já que ninguém anda com o marcador de milhas na sacola, os nossos Programas de Fidelidade substituíram as distâncias por pontos. E ponto final. Não inovaram grande coisa.

Com esse panorama visto da ponte, acho que o primeiro que se dispuser a quebrar paradigmas e, licencinha da chula expressão, der um chute na própria bunda, vai conquistar resultados compensadores. Mas pra isso há que se reinventar a mecânica de participação (tornando-a mais divertida e menos sovina), reavaliar a qualidade dos bônus (chô eletrodomésticos óbvios) e até repensar o formato de comunicação.

Feita a desconstrução e a subsequente remontagem, surgirá um novo Programa de Fidelidade com promissores resultados. Caberá ao autor da façanha aproveitar os méritos da criatividade: gerar novamente a fidelidade a seu favor e provocar, na mão contrária, a infidelidade contra seus concorrentes.

Mas atenção: esses concorrentes ficarão apenas temporariamente com os córneos adereços. Rapidamente eles redesenharão seus próprios Programas clonando tudo o que o outro tem de inovador, buscando reconquistar para o rebanho as ovelhas infiéis. As quais, se reconquistadas, não devem motivar festas pois a fidelidade delas será eterna até pintar a próxima tentação para outra deliciosa traição.


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