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Autor:
Ricardo Viveiros
Qualificação:
Jornalista e escritor.
E-mail:
[email protected]
Data:
29/05/03
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Cidadania Não Tem Limite, "Pirataria" Sim.

Quando eu fui criança, há 50 anos, o mundo era bem diferente do que é hoje. O Brasil também era outro, mais diferente ainda. Entretanto, algumas coisas seguem iguais até estes nossos dias. Uma dessas fica por conta da natureza de cada um de nós, seres racionais. Ou seja, gente sempre é igual na sua absoluta diferença na essência humana. Caráter, esse conjunto de traços particulares que distinguem as pessoas entre si, é uma coisa que felizmente continua existindo para a melhor compreensão da vida.

A sociedade moderna, cada vez mais inventiva na linguagem que pratica, cunhou as expressões "bom" e "mau caráter" para se referir àquelas pessoas que, no entender particular de cada um, se enquadram numa ou noutra dessas categorias. Os jovens, ainda mais inovadores, buscaram simplificar criando as qualificações "do bem" e "do mal". Neste momento, por exemplo, Bush e Saddam podem ser "do mal" ou "do bem" para quem os vê diante da barbárie dessa nova guerra.

Atualmente, uma coisa é certa, mais do que nunca a escola e os professores se tornaram indispensáveis na educação da criança, do adolescente e do jovem. Educação entendida como preparação ampla para a vida. Quando eu era criança, a escola tinha a responsabilidade de apenas instruir para uma futura carreira profissional. O restante ficava por conta da família. Nos dias em que vivemos, os adultos, todos, trabalham e têm que enfrentar a competitividade predatória da economia globalizada &Mac247; falta tempo para educar as crianças.

Nesse aspecto, a escola ampliou-se e assumiu outras funções, digamos paradidáticas, de complementar a formação global do aluno. A escola contemporânea ensina responsabilidade social, tecnologia da informação, participação política, ações comunitárias, lazer, cultura &Mac247; quando não, também higiene e saúde. Ensina cidadania, na acepção mais ampla da palavra. Por isso, é muito importante que os pais entendam que não há investimento melhor do que na educação dos filhos. O que exige a escolha certa da escola, na qual vão matriculá-los.

Sem temer o excesso de zelo, quando meu filho Felipe alcançou a idade escolar, preparei um questionário com cerca de 40 itens &Mac247; da localização, passando pelo método pedagógico até a segurança &Mac247; e tive a "cachimônia", como dizia meu pai, de visitar 14 escolas da cidade de São Paulo para, planilha na mão e olhar de inspetor de armas da ONU, investigar detalhadamente cada uma delas. Já que educação é um investimento responsável, fui escolher com o máximo cuidado onde eu iria aplicar o meu dinheiro. Optei pela "Lourenço Castanho". E não me arrependo, lá se vão quatro anos.

Para comprovar que o esforço na escolha da escola não foi em vão, conto aqui um fato interessante. Quem é pai, mãe, avô, avó certamente viveu, nos últimos tempos, as manias "Pokémon", "Beyblade" e, neste momento, experimenta as emoções do "Yu-gi-oh". Todas sempre caras e, no mínimo, de qualidade questionáveis. Mas, neste caso, o ponto não está nos jogos e, sim, em algo mais além. A "pirataria" é um perigo permanente, causando efeitos nocivos a todos. E como estes tempos andam bicudos, os parentes das crianças imaginam que, ao comprar produtos falsificados, atendem expectativas dos "consumidores" supostamente pouco exigentes; e melhor, gastam menos. Terrível engano.

Meu filho Felipe, nove anos de idade, tem absoluta noção do valor do dinheiro e também do que significa o esforço para ganhá-lo mensalmente; prioridades e supérfluos. Por isso, com muito bom senso, apenas insinua seu interesse por esse ou aquele brinquedo, jogo da moda. Claro, recentemente, tem falado muito em "Yu-gi-oh". Só que o tal deck de cartas custa algo em torno de R$ 75,00. Como viajo profissionalmente, com freqüência, para o Exterior, prometi trazer um desses na volta da próxima viagem &Mac247; quem sabe, a ser comprado a um preço menor. Mas, uma das características da infância é a ansiedade. Assim sendo, num desses shoppings populares com dezenas de pequenas lojas, Felipe comprou, barato, e com recursos próprios (economias do cofrinho), seu tão sonhado baralho "Yu-gi-oh". Que felicidade!

Durou pouco. O barato saiu caro. Consumidor atento, ele mesmo percebeu que era uma falsificação &Mac247; mera cópia bem feita do original. Desiludido, pediu à mãe que voltasse com ele à lojinha para exigir a troca do produto; afinal havia perguntado à vendedora, no ato da compra, várias vezes pela autenticidade, no que ela respondera com sotaque estrangeiro: "vedadeio", garantindo a qualidade. Mas, não era. A mãe do Felipe, muito ocupada, não quis voltar à loja por algo aparentemente pouco importante. Além do que, segundo ela, a embalagem havia sido aberta e já passara alguns dias da compra, comprometendo a troca.

Felipe veio conversar comigo sobre o episódio, dizendo que lhe parecia injusto ter sido enganado. Concordei. Perguntou o que poderia fazer. Falei sobre a existência do Código de Defesa do Consumidor, seus direitos e tudo o mais. Ele lembrou do tema, já abordado na escola. E diante do seu interesse, prometi que, no final de semana seguinte, com mais tempo, iria com ele à lojinha para tentar a troca do produto. Na sexta, antes da data prometida por mim para a operação contra a "pirataria", Felipe, por sua conta e risco, em companhia da empregada doméstica, foi até o tal shopping.

A acompanhante adulta, com vergonha e/ou receio, não quis se aproximar e ficou, de longe, só olhando. "Yu-gi-oh" falso nas mãos, coração pulando no peito, cidadania na cabeça, Felipe acercou-se da loja e, com uma voz que insistia em não sair, cumprimentou a proprietária, que não lhe deu a menor atenção. Pigarreou e insistiu. A senhora, aparentemente de origem oriental, enfim lhe dedicou um olhar desdenhoso. Felipe, sem perder a calma e os bons modos, recordou o ato da compra, a repetida pergunta quanto à autenticidade por ela confirmada e a posterior descoberta de que o produto era falsificado, "pirata".

A vendedora, então, confirmou com forte sotaque de difícil compreensão, já nervosa e falando alto, que o produto era falso mesmo, que ela avisara que não era verdadeiro, que nenhum cliente havia voltado para reclamar, que não podia trocar e nem devolver o dinheiro pago. A essa altura, já havia gente parada no corredor observando aquele pirralho tentando fazer justiça. E foram os 20 minutos mais longos da curta vida do Felipe. Ele, comprometido com a certeza de seus direitos de consumidor, seguiu argumentando cada ponto que se recordava dos ensinamentos sobre o código.

Felipe, finalmente, disse &Mac247; mantendo a postura terna, mas firme &Mac247; que ele era apenas uma criança, que havia sido enganado, que iria buscar seus direitos contra a loja, que vender produtos "piratas" era crime. Diante da platéia embevecida e da determinada convicção daquele loirinho de olhos azuis, tão educado e corajoso, a senhora se mostrou vencida. Frente a fatos demonstrados com boa argumentação, tanto espírito de cidadania, a vendedora se rendeu. E o dinheiro foi, integralmente, devolvido. Felipe, radiante, mas sem tripudiar sobre a derrotada, despediu-se simpaticamente e partiu sob os olhares admirados dos demais consumidores.

Fica, portanto, a lição do valor de se aprender, desde pequeno, o respeito aos direitos, seus e dos outros. E da maneira correta. Da escola parceira da família nessa educação ampla para a vida, transcendendo os limites da instrução. Do aprimoramento do caráter, da valorização dos talentos e do permanente incentivo à prática da cidadania. Formar pessoas é, antes de tudo, ter a consciência da importância do ser humano, saber respeitar o próximo como a si mesmo. Obrigado à escola, obrigado às professoras e funcionários pela educação de crianças que aprendem desde pequenas (e para sempre) a conhecer direitos e lutar por eles.

Obrigado, Felipe, pela exemplar atitude. Adultos deveriam prestar mais atenção às crianças. Elas podem nos ensinar muitas coisas. E nunca é tarde para aprender.

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