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Autor:
Vitor Gomes Pinto
Qualificação:
Analista internacional e coordenador da Unidade de Conhecimento de Saúde do Sesi/CNI.
E-Mail
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Data:
30/04/03
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Governança Global Sob Risco

O mundo necessita, com urgência, um novo ordenamento jurídico que permita lidar com situações não previstas pela Carta da ONU de 1945 ou pelos seus pilares mais remotos de sustentação: o Tratado de Versailles de junho de 1919 no qual os membros da Liga das Nações concordaram em respeitar e preservar contra agressões externas a integridade territorial e a independência política de todos, e a Paz de Westphália de 1648 que acabou com as guerras que então minavam a Europa. Três princípios regem as atuais relações internacionais: soberania (Estados grandes ou pequenos têm direitos iguais), inviolabilidade da integridade territorial e não intromissão externa nos assuntos domésticos de cada nação. Quando o Conselho de Segurança, reunido em Genebra em junho de 1999, permitiu a quebra da autoridade da Iugoslávia sobre o Kosovo, na prática rompeu a ordem jurídica tradicional. Hoje, no Iraque, o que se discute é exatamente isto: o mundo é capaz de encontrar um novo caminho coletivo e de união global ou cederá diante da força do império liderado por G. Bush? Não há dúvida de que um ataque unilateral dos EUA aos 24 milhões de iraquianos presididos por Saddam Hussein transformaria a ONU em uma organização irrelevante. Se, logo, Putin decidisse tomar a Chechênia ou a Geórgia, que lei o impediria?

Uma Governança Global (GG) é a proposta de reordenamento mais concreta em discussão. Defendida pelo Clube de Roma, resultou na criação da Comissão de GG da ONU com idéias desafiadoras formuladas em seu informe de 1995 ("Nossa vizinhança global") onde, com base na crença de que o mundo está pronto para aceitar uma ética cívica global e de que estados soberanos não são livres para fazerem o que quiserem, sugeriu que se lhe dê autoridade para intervir em territórios soberanos e propriedades privadas para lidar com questões humanitárias, ambientais e graves crises econômicas e políticas. Diante de fronteiras nacionais cada vez mais porosas, é preciso exercer a soberania de forma coletiva, argumenta a Comissão, ao requerer para si o direito de tutelar os "bens globais" (atmosfera, oceanos, ambientes e sistemas de suporte à vida) inclusive coletando taxas para permitir o seu uso. A soberania coletiva serviria não só para resolver problemas de guerra, de povos famintos ou escravizados, mas também para assegurar a manutenção de áreas críticas para a sobrevivência da humanidade como o Ártico e a Amazônia, evitar a emissão de carbono pelos EUA ou a eventual obstrução do uso das fontes de petróleo pela OPEP.

Mandato tão amplo deixa temerosos, de um lado, os países em desenvolvimento largamente prejudicados pelo processo de globalização em curso e, de outro lado, os países poderosos que se negam a enfraquecer seu avassalador domínio econômico e militar. Um dos formuladores do conceito de GG, Yehezel Dror, diz que há 3 funções básicas a cumprir: evitar o pior (de consenso mais fácil, p.ex., em casos de colapso ecológico, fome intensa, países de radicalismo extremo); alcançar o bem, como a globalização dos direitos humanos e, por fim, o mais difícil, decidir o que é bom e mau. Este último ponto é o mais interessante. O leitor pode fazer um teste, opinando sobre temas como os transgênicos, uso de drogas, pena de morte, as Farc e por ai vai. Quem decidirá? No Brasil, a Amazônia e o Pantanal poderiam passar, provisória ou permanentemente, à gestão da ONU? Um teste crítico para a força dos organismos supranacionais ocorreu quando a Comissão Mundial de Barragens apoiou a construção da represa de Sardar Sarovar no estado de Gujarat, Índia, apesar da oposição dos ambientalistas e das comunidades expulsas. Ao ser inundado o vale em agosto do ano passado, só a violência policial conseguiu retirar de dentro d´água Satyagrahas (grupo de resistência não-violenta criado por Gandhi) dispostos a imolar-se por afogamento, num caso de intensa repercussão mundial.

A obtenção de recursos para sustentar o exercício da governança global é um desafio decisivo. Cifras fantásticas estão sendo imaginadas. Segundo a Cúpula Mundial do Desenvolvimento Sustentável em Joanesburgo, 2002, os países ricos devem gastar 0,7% do seu PIB em ajuda ao mundo em desenvolvimento, ou seja, algo em torno de 144 bilhões de dólares considerando somente o PIB total de EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá que é de U$ 20,6 trilhões. Já a Taxa Tobin (de James Tobin, prêmio Nobel de economia de 81), de pelo menos 0,1% sobre transações financeiras do mercado de capitais para reduzir a especulação financeira de curto prazo, teria o potencial de arrecadar cerca de U$ 250 bilhões ao ano. Esperanças irrealistas? É possível, ainda mais se compararmos com o orçamento anual da ONU, de US$ 2,6 bilhões, ou com o PIB do Brasil, o 11º do mundo, de U$ 510 bilhões. Segundo o Banco Mundial, seriam precisos U$ 225 bilhões por ano para eliminar da face da terra as piores formas de pobreza e dar proteção ambiental básica. Além de conseguir cobrar um imposto global, há que saber em que mãos ficará e no que será gasto. O FMI, candidato natural a gerir os novos recursos, pelo seu passado deveria ser descartado, mas esta certamente não será uma fácil missão.

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