.
Autor:
Marco Antonio Innocenti
Qualificação: Membro da Comissão Especial de Precatórios da OAB/SP e da Comissão Nacional de Legislação do Conselho Federal da OAB
e-mail:
[email protected]
Data:
03/07/2008

As opiniões expressas em matérias assinadas não refletem, necessariamente, a posição do Empresário Online. Proibida a reprodução sem a autorização expressa do autor.

Os precatórios e o Poder Judiciário

A decisão da juíza Simone Casoretti, da 9ª Vara da Fazenda de São Paulo, de condenar uma ex-prefeita de São Paulo sob a acusação de descumprir ordem judicial para o pagamento de dívidas judiciais quando era prefeita, poderá se tornar, se confirmada pelas instâncias superiores, um marco na história do Judiciário. A decisão responsabiliza o agente político responsável pelo orçamento e pagamento de precatórios pela sua omissão (critério objetivo), extraindo consequências jurídicas coativas que resultam do sistema normativo positivado na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional. No caso em questão, a ex-prefeita foi condenada com base na Lei de Improbidade à suspensão dos direitos políticos por três anos e ao pagamento de multa equivalente a dez vezes a remuneração que tinha no cargo.

Essa decisão inédita, é bom lembrar, ajuda a redimir a grande culpa que tem o Poder Judiciário pela inadimplência generalizada dos precatórios, resgatando a lembrança do compromisso dos órgãos jurisdicionais com a garantia do efetivo cumprimento das decisões que proferem, já que, na verdade, vem sendo o Judiciário como um todo, especialmente o Supremo Tribunal Federal, extremamente leniente com os devedores públicos, permitindo ao longo dos anos que a dívida judicial fosse desprezada, sobretudo por governadores e prefeitos, pela certeza da impunidade ou da falta de responsabilização pela omissão em relação ao descumprimento dos precatórios.

É que o Poder Judiciário, tradicionalmente, nunca exigiu o cumprimento das dívidas judiciais, nem através do presidente dos tribunais, que é a autoridade judiciária responsável pela requisição dos valores à entidade pública devedora e respectivo controle dos pagamentos, nem através dos órgãos judiciários de primeiro e segundo grau, que nunca impuseram qualquer sanção por entenderem não ter nada a ver com isso. É como se o problema não fosse do Judiciário, e sim restrito aos interesses dos credores e devedores, embora seja claro que o maior prejudicado é o próprio Poder Judiciário, que condena, mas não obriga ao pagamento. Portanto, faz de conta que faz justiça, destruindo as bases institucionais do Estado Democrático de Direito, onde o Judiciário deve assumir um papel maior sobretudo em face dos conflitos que envolvem o particular e o Estado.

O prejuízo maior, isso é bastante óbvio, é do próprio Estado brasileiro, pois reflete a insegurança jurídica que se tem em relação às garantias do direito de propriedade diante de um Poder Judiciário que não imprime eficácia aos seus próprios provimentos. Historicamente, o STF contribuiu muito para o estado geral de inadimplência em que se encontram os precatórios, pois sempre acolheu teses das fazendas estaduais e municipais que permitiam alguma forma de protelação desses pagamentos.

Na década de 80, até o início da década de 90, o STF possibilitou aos governantes pagarem seus precatórios sem correção monetária. Ou seja, com inflação que chegou a 80% ao mês, o pagamento era simbólico em face do débito total. A tese era um absurdo: não poderia haver indexação dos débitos, como se fosse lícito ao devedor pagar dívida pelo valor nominal em regime de violenta inflação. Resultado: o precatório gerava outros tantos precatórios, que nunca eram pagos efetivamente.

Na década de 90, o STF decidiu que a intervenção federal nos estados não era viável para o cumprimento das dívidas judiciais, ocasião em que a Suprema Corte sequer sinalizou com a possível aplicação de alguma espécie de sanção que pudesse demover os agentes políticos de sua intenção de não pagar precatórios, o que permitiu às entidades públicas devedoras simplesmente ignorar o cumprimento dos débitos que se arrastam até hoje em longas filas.

Embora o STF venha sinalizando hoje estar menos complacente com a inadimplência geral dos precatórios, sua atuação é ainda tímida e isolada, resumindo-se a poucos julgamentos que concedem algum tipo de alento a credores que estão em situação de extrema necessidade (caso de doenças grave) ou que têm dívidas tributárias ou fiscais, permitindo a sua compensação com precatórios. Mas mesmo nessas exceções, os demais tribunais do país não vêm seguindo a orientação do STF, ignorando, com raras exceções (caso do TJ/SP), pedidos de seqüestro por fundamento humanitário.

Aliás, persistindo essa paralisia do Judiciário frente ao Executivo, nem mesmo a PEC 12, projeto de emenda constitucional que tramita perante o Senado e que prevê a vinculação de receita dos governos para pagamento de precatórios, será cumprida no que se refere às mínimas garantias previstas em termos de sanção aos devedores e seus respectivos agentes políticos, mediante instrumentos coativos disponibilizados aos presidentes dos tribunais, pois, se não cumpre hoje funções correlatas já previstas na Constituição Federal e na legislação ordinária, também não cumprirá em nenhum outro cenário constitucional.


.

© 1996/2008 - Hífen Comunicação Ltda.
Todos os Direitos Reservados.