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Autor:
Flavio Farah
Qualificação:
Mestre em administração de empresas e professor universitário
E-mail:
[email protected]
Data:
04/06/05
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Análise Ética de uma Situação Rotineira

SITUAÇÃO


Guilherme encontra Solange, conhecida sua, e lhe diz:
- Vou me inscrever no vestibular de medicina da faculdade ABC.
Ao que Solange responde:
- Se eu fosse você, não gastaria tempo e dinheiro com isso. Esse vestibular é muito difícil e concorrido.

ANÁLISE

Na declaração de Solange, vejo:
uma avaliação _ implícita _ do preparo de Guilherme, isto é, uma comparação entre o nível de preparo de Guilherme e o grau de dificuldade de um certo exame vestibular;
um veredicto: Guilherme não tem preparo suficiente para enfrentar o vestibular em questão, daí o conselho para não se aventurar.

O fato de Solange aconselhar Guilherme suscita algumas questões. Primeiro, por que ela aconselhou Guilherme sem que este lhe tivesse pedido tal coisa? Pergunto-me se uma pessoa tem o direito de dar conselhos a outra sempre que tiver vontade. No caso, pode-se argumentar que a intenção de Solange provavelmente foi ajudar Guilherme. Mas as pessoas, às vezes, reagem rispidamente a uma recomendação, dizendo: "Ninguém pediu sua opinião!!!". Qual o motivo dessa reação? Uma possível resposta é que talvez o conselho tenha ferido sua auto-estima. Algumas pessoas poderiam ver na recomendação de Solange uma mensagem implícita do tipo: "Você não tem competência para passar nesse vestibular". Será que essas pessoas não se sentiriam feridas em sua auto-estima se recebessem o dito conselho?

Outro questionamento é como Solange pode estar certa de que Guilherme fracassará. Para ter essa certeza, ela precisaria conhecer muito bem o nível de preparo dele. Será que Solange não deu o conselho baseada apenas no grau de dificuldade do vestibular, que ela parece conhecer bem, sem considerar se Guilherme está ou não preparado?

Uma terceira dúvida é se Solange tem o direito de avaliar o preparo de Guilherme e dar-lhe feedback sem que este lhe tenha pedido. Será que um indivíduo tem sempre, em qualquer situação, o direito de avaliar a qualificação ou o desempenho do outro? Em outras palavras, o que estou perguntando é se temos o direito natural de dar feedback, se nascemos com esse direito. Será que Solange não deu o feedback apenas para exibir seus conhecimentos sobre aquele vestibular, para se sentir importante ou superior, ou para menosprezar Guilherme?

Quarto, parece-me que, quando Solange diz a Guilherme o que fazer, ela o está tratando como alguém incapaz de analisar situações, identificar os próprios interesses e objetivos, e de tomar decisões a partir daí. Assim, concluo que Solange está tratando Guilherme como criança, isto é, que ela está sendo paternalista, ou melhor, maternalista. E paternalismo é uma das faces do autoritarismo.

Quinto, parece-me que, quando Solange diz a Guilherme o que fazer, ela se torna moralmente responsável pelo que acontecer se Guilherme seguir seu conselho. Se Guilherme fizer o que Solange recomendou e for prejudicado, ou apenas se arrepender, ele não a culpará? Por outro lado, poderá ela honestamente eximir-se de responsabilidade pelo prejuízo que Guilherme tiver sofrido? Penso que é muito arriscado dizer a uma pessoa adulta o que fazer. Parece razoável mostrar ao outro alternativas que ele talvez não tenha percebido, os prós e contras de cada alternativa, e até outros modos de ver o problema. Isto significa ajudá-lo a raciocinar. Dizer, porém, qual curso de ação a pessoa deve seguir é coisa bem diferente, trata-se de uma séria responsabilidade. Creio que algumas pessoas são rápidas e pródigas em dar conselhos justamente porque não têm consciência das implicações desse gesto.

O outro aspecto que eu gostaria de comentar é a frase "Se eu fosse você ...". Costuma-se definir empatia como a capacidade de se pôr no lugar do outro e de compreender como ele pensa e como se sente. A pessoa empática tenta entender os objetivos, os interesses, os sentimentos, os motivos e o modo de pensar da outra. Ser empático, portanto, leva tempo e dá trabalho. Para adquirir empatia é preciso conversar muito com o outro e fazer-lhe muitas perguntas, apenas para compreendê-lo, sem julgá-lo.

Creio que é muito difícil dar um conselho útil sem conhecer o outro. Se alguém, portanto, quiser se arriscar a dar conselhos, apesar de toda a responsabilidade que isso traz, esse alguém não deveria, pelo menos, tentar antes ser empático em relação à pessoa que será aconselhada? Ora, Solange disparou automaticamente uma recomendação a Guilherme sem fazer-lhe uma única pergunta. Assim, a menos que ela o conhecesse muito bem, sou forçado a concluir que o conselho que ela deu derivou de sua própria maneira de ser, razão pela qual serve somente para si mesma. A postura de Solange foi antiempática. Penso que isto reduz drasticamente a utilidade da recomendação.

A locução "Se eu fosse você..." parece conter uma contradição em termos. Porque se eu fosse você eu não seria eu, eu seria você e agiria exatamente do modo como você age. Substituir essa frase por "Se eu estivesse em seu lugar..." também não adianta. A pessoa em questão seria eu, apenas colocado na situação em que você está. Aí eu tomaria uma decisão com base em minha maneira de ser, não na sua.

Se tudo isto for verdade, qual o valor de um conselho precedido de "Se eu fosse você..." mas desprovido de uma postura empática?

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