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Autor:
Marilza M. Benevides
Qualificação:
Diretora Executiva do Instituto Yiesia de Governança Corporativa e Compliance.
E-mail:
[email protected]
Data:
29/03/2012
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É a Ética do mercado! Que Ética?

Muito repercutiu a recente reportagem do “Fantástico” que denunciou um esquema envolvendo corrupção, fraudes e toda sorte de falcatruas reunidas em um único caso: simulação de licitação para contratação de serviços terceirizados para um hospital público. Não que os descalabros revelados na reportagem sejam novidades para nós, brasileiros, ou na verdade para a maioria dos povos, como se tem visto em tantos casos de fraudes e de corrupção mundo afora, resultantes da arrogância, da ganância e da vaidade do ser humano. Mas este caso tem uma peculiaridade ainda mais indecorosa que é o fato da anomalia ser encarada como prática ordinariamente estabelecida.

Temos uma história farta de exemplos como o que foi veiculado, herança que continua a tomar robustez entre nós. O fato é que aqueles que pregam e atuam nesse submundo de enganação e de corrupção causam grande mal à sociedade, impregnando nossa cultura, as instituições e o mercado de tal maneira que alastram a mácula da má-fé e da desonestidade como se essas características representassem o nosso povo. Injusta generalização. Há muitas iniciativas de combate a essas afrontas. É que as pedras nos caminhos para se fazer o bem, além de maiores e mais numerosas, são retiradas a mão e não a base de dinamites.

Como brasileira, advogada e profissional de Compliance sei muito bem as mazelas que cercam nossas instituições sociais, jurídicas, políticas e tudo mais que forma o nosso tecido cultural. Mas sei também que há o outro lado da história que precisa ser contada. Assistindo o documentário sobre o colapso da Enron, em 2000, percebi que a grande preocupação dos investigadores à época se resumiu a três pontos: i) o que aconteceu; ii) quem são os responsáveis; e iii) o que fazer para evitar que isso volte a acontecer. As respostas para as duas primeiras foram fáceis. No dia seguinte, os jornais já davam detalhes do esquema e o nome dos “mais espertos da sala”. A terceira, esta sim, é difícil, e, até hoje não há resposta, se é que algum dia haverá, sobre como evitar que o ser humano continue a ludibriar, fraudar e a corromper. Do ponto de vista antropológico não me meto a falar, apesar do meu interesse no tema, mas do ponto de vista da governança, proponho-me expor algumas iniciativas que têm sido implantadas visando remediar a vulnerabilidade das organizações.

Não há dúvida de que a Ética, aqui em maiúscula para distinguir-se da “ética do mercado” citada por um dos flagrados na reportagem como justificativa da fraude, é o valor maior que deve orientar todo negócio, sem o qual não há que se falar em políticas, procedimentos, controles internos e tantos outros aspectos que compõem as boas práticas de governança corporativa. A Ética e a transparência de uma organização são o seu maior valor intangível, a sustentar a sua reputação e a sua credibilidade, sem a qual uma organização não passa de um mero castelo de areia a desmoronar a qualquer momento. Isso vale para as pequenas e até mesmo para as “grandes demais para falir”, como a Enron e tantas outras que se foram no rastro dela.

O primeiro passo, portanto, é fazer com que esses valores passem a fazer parte do “DNA” da organização e, para isso, é absolutamente imprescindível que o exemplo e o comando venham de cima, ou seja, da alta gestão. Como se costuma dizer no jargão da área, é uma iniciativa “top down”. Em seguida, há que se certificar de que as políticas e procedimentos existentes são compatíveis com o posicionamento da organização e, mais que tudo, com a legislação e regulamentos que incidem sobre dada atividade. Porém, todo cuidado é pouco, pois, pior do que não ter um Código de Ética, políticas e procedimentos, é tê-los e não segui-los por estarem dissociados dos valores sobre os quais a organização apoia suas decisões e condutas de rotina. Mais uma vez, o caso Enron é emblemático nesse quesito.

Essas são apenas algumas iniciativas que estão ao alcance das organizações. Elas previnem, reduzem contingências e agregam valor. Mas só isso não basta. Lembremos, mais uma vez, que organizações são feitas por pessoas e que não há regras de condutas que possam dar conta da criatividade humana quando as debilidades morais ou de ordem mais complexa vêm à tona. Daí a necessidade da intervenção por parte de legisladores e de reguladores e da mobilização por parte da sociedade organizada, como forma de mitigar riscos. Dos primeiros esperam-se leis e regulamentos claros, além de monitoramento, fiscalização e um sistema de penalidades consistente. Por parte dos demais players do mercado espera-se mobilização e ativismo. Quando todas essas partes se juntam as luzes no fim do túnel começam a brilhar. Vejamos alguns exemplos:

Por conta de tratados internacionais assumidos pelo Brasil, o Poder Executivo protocolou no Congresso Nacional, em 2010, Projeto de Lei, nº 6826/10, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos, em especial os de corrupção, praticados contra a Administração Pública, nacional e estrangeira. É a já apelidada “Lei Anticorrupção”, cujo relator é o Deputado Federal Carlos Zarattini. Ao assinar compromissos internacionais de combate à corrupção, sobretudo a Convenção das Nações Unidas (“Convenção da ONU”), a convenção Interamericana (“Convenção da OEA”) e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (“Convenção da OCDE”), o Brasil, assim como os demais membros signatários desses tratados internacionais, está sujeito a mecanismos de monitoramento das providências para implantar, monitorar e promover as orientações contidas nas Convenções, principalmente as da OCDE*.

E por que devemos dar as boas-vindas a este Projeto de Lei? São muitas as razões. A começar pela punição a pessoas jurídicas por crimes de corrupção, inclusive aquelas que atuam fora do país. Além disso, o referido PL estabelece a responsabilidade objetiva no caso de atos contra a administração, punindo a empresa pela prática da infração independentemente de comprovação da intenção de lesar, o que poderá ser discutido em juízo. As punições administrativas vão desde o impedimento de receber recursos públicos, contratar com a administração pública, ao pagamento de multas que podem variar de 0,1% a 20% do faturamento bruto anual, excluídos os tributos.

Sanções são importantes medidas que ajudam a coibir crimes e más condutas. No entanto, elas devem compor um conjunto mais amplo de atividades envolvidas no âmbito de prevenção de riscos. E é nesse aspecto que o referido Projeto de Lei introduz mecanismos que podem significar um grande diferencial para as empresas que optarem por adotá-los. Afinal, entre os fatores que poderão mitigar as sanções aplicadas a pessoas jurídicas consideradas responsáveis por atos ilícitos, previstos no PL 6826/10, está a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”, conforme disposto em seu artigo 9º, VIII. Além disso, o referido PL prevê ainda, como possível fator de mitigação, a cooperação na apuração das infrações às autoridades, inclusive por meio de acordo de leniência.

Com esses dispositivos, o Brasil se insere no grupo de países que promovem e valorizam Programas de Compliance, os quais se traduzem em processos sistemáticos e contínuos que visam o cumprimento por parte das organizações, empregados e parceiros, de legislações, regulamentos vigentes, políticas e diretrizes estabelecidas para o negócio, valorizando e promovendo uma cultura organizacional baseada na Ética, transparência e colaboração. Assim sendo, é inegável a importância de programas de Compliance como instrumento de apoio e incentivo às empresas que pretendam garantir sua perenidade através das melhores práticas de Governança Corporativa.

Há, sem dúvidas, enormes desafios a serem enfrentados até que o Brasil avance no combate à corrupção. São as mazelas sociais que resvalam na desestruturação da família, o sistema depauperado da educação, a falência dos valores morais, e mais um sem número de problemas de magnitude trágica. Mas, por outro lado, vemos a coragem de pessoas e instituições que fazem a diferença. É a mídia que denuncia, pessoas comuns que desafiam os mecanismos do crime, como o diretor do hospital que participou da reportagem, instituições que promovem debates e discussões sobre o tema, reguladores atentos às necessidades de regulamentação do mercado e, finalmente, o Congresso que está por aprovar o PL 6826/10 que, mesmo merecendo aprimoramento, aponta para um novo posicionamento com relação ao crime de corrupção praticada por empresários inescrupulosos. A esperar para ver como se darão a fiscalização e a penalização dos infratores.

Do lado das organizações percebemos um número crescente de empresas preocupadas em relacionar a sua imagem às boas práticas da governança corporativa, seja por conta de imposições legais, seja por conta da mais valia que ditas ações conferem ao seu valor de mercado, ou seja, ainda, por conta do aumento de conscientização quanto à sua responsabilidade no âmbito da sociedade que a acolhe. Qualquer que seja a situação o fato é que paulatinamente surgem evidências de movimentos que ganham força e consistência contra a prática de fraudes e de corrupção, bem como de mecanismos de prevenção e de controle a esses tipos de riscos, como é o caso dos programas de Compliance que começam a ganhar visibilidade no ordenamento brasileiro.

Todos esses movimentos são evidências de que mudanças estão ocorrendo. Afinal, após tantas crises e escândalos e com a crescente vulnerabilidade das empresas ao cerco regulatório, à mídia investigativa, à exposição das redes sociais e à crescente conscientização e ativismo por parte da comunidade em geral é preciso resgatar valores como integridade, respeito e confiabilidade como direcionadores das decisões empresariais, não só como forma de mitigar riscos sobre o seu capital de reputação, mas principalmente como forma de contribuir para que menções à Ética sejam feitas com responsabilidade no âmbito das organizações.

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