Saúde, um Setor Visto Pelos Fundos
A crise da saúde no Brasil é um assunto diário, mas pouco
se conhece sobre os métodos que regem esse setor e fazem dele um poço
de ineficiência. Para entender o que está acontecendo, não
basta consultar médicos, enfermeiras, pacientes, administradores, autoridades.
É preciso ir um pouco mais fundo e visitar, por exemplo, o departamento
de compras de um hospital. É o que o empresário Mauro Pedro Lopes,
da Grifarmed Acessórios Farmacêuticos e Hospitalares, chama de
conhecer o problema "pelos fundos".
Ele sabe do que está falando. Sócio há dez anos do seu pai,
que já sofreu um enfarte provocado pelo desgosto e pelas dificuldades,
Mauro acompanhou toda a trajetória do desastre. Viu mudar a natureza do
relacionamento entre fabricantes, distribuidores e estabelecimentos no mercado
em que atua, o de material de consumo médico, como seringas, agulhas, gases,
algodão, esparadrapos etc. Viu a qualidade sendo substituída pela
preocupação exclusiva com o preço. Viu a gestão hospitalar
virar, muitas vezes, um simples negócio, com algumas honrosas exceções.
E viu-se, de repente, confinado a poucos clientes, quase nenhum funcionário
e um faturamento decrescente.
Mas, de fibra empreendedora, resolveu ajudar a disseminar seus conhecimentos não
só sobre a área de saúde mas, principalmente, sobre a administração
de pequenas empresas, conhecimento que adquiriu na prática e que ele continua
aplicando para manter a Grifarmed viva. Professor de cursos de preparação
de novos empresários, Mauro procura romper a solidão dos que resolvem
empreender os próprios projetos. É a maneira que encontrou para
enfrentar os vícios do mercado, aumentando a conscientização
sobre as causas fundamentais do nosso atraso. É o que ele conta a seguir,
neste depoimento exclusivo.
DISTRIBUIR NÃO É ATRAVESSAR -
"Começamos como atacadistas para o ramo de farmácias e mais
tarde resolvemos atender também os hospitais. Os fabricantes não
tinham condições de atingir um setor tão pulverizado como
esse, pois seriam obrigados a arcar com um custo muito alto. Era preciso investir
pesado num departamento de vendas à altura da demanda. Fazíamos
a compra direta e atendíamos com agilidade e a preços competitivos,
pois, graças a um bom gerenciamento de estoques, conseguíamos, às
vezes, vender mais barato do que os próprios fabricantes.
Como trabalhamos com material de primeira linha e temos uma vocação
para o setor, não nos preocupamos em alavancar preços, como fazem
os atravessadores. Nosso serviço é de distribuição,
com qualidade. Só que esse nicho que detectamos no início da década
passada estava num pico interessante e chegamos a atender clientes de todo o País.
Mas o Plano Cruzado e mais tarde o Plano Collor acabaram mudando o perfil do mercado.
No Cruzado, faltou tudo neste país e as indústrias pararam de vender
para os distribuidores, estabelecendo vínculos diretos com os hospitais,
pois seus produtos estavam congelados numa faixa de preço muito pequena.
Foi aí que desmontamos aquela grande estrutura de atendimento para todo
o País e passamos a cuidar mais da área hospitalar, enquanto muitos
concorrentes iam à falência. Quando a situação se normalizou,
a margem de lucro tornou-se muito pequena. Ficamos, então, restritos aos
hospitais da periferia, já que os principais clientes eram atendidos diretamente
pelas multinacionais."
POR QUE CONSUMIMOS MENOS SERINGAS?
"No setor farmacêutico, as redes maiores tornaram-se também
distribuidoras, pois precisam ter um volume de compras suficiente para poder dar
um desconto nos preços. Hoje, o brasileiro economiza dentista, médico
e remédio, e isso se reflete no volume de vendas no nosso setor. Mas o
que não dá para entender é por que, se a estrutura permaneceu
igual, hoje se consome o mesmo número de seringas do que há uma
década, na época das seringas reutilizáveis de vidro?
Nos hospitais de fundão, como chamamos os da periferia, o material utilizado
é menos diversificado do que em um grande hospital. E o que é pior:
tem menos qualidade. Hoje, o que existe é o ganho do negócio empresarial,
com dois tipos de profissional na gestão hospitalar: o que sabe administrar,
que tem lucro dando atendimento de alto nível, e o que atende de qualquer
jeito e quer ser reembolsado pela Previdência da mesma forma que o outro,
que trabalha direito.
Hoje, os distribuidores estão disputando esse mercado da periferia, numa
espécie de briga de foice no escuro, com 20 a 25 vendedores em concorrência
permanente. Detectamos na pediatria ou na enfermagem algumas sugestões
importantes e levamos ao departamento de compras, mas eles não se sensibilizam.
A preocupação é com o faturamento, sem se importar com a
qualidade do atendimento. Porque a gente não vende seringas, luvas ou esparadrapos,
mas saúde. Só que isso não interessa."
TODAS AS FATURAS PASSAM PELO RIO DE JANEIRO
"Eles se queixam de que a Previdência custa a pagar e, por isso, precisam
brigar pelo preço. Trata-se de um círculo vicioso: o hospital cobra
caro do governo por qualquer serviço, porque não sabe quando vai
receber; o governo reduz a fatura, porque sabe que existem excessos, e atrasa,
porque o dinheiro ainda não foi liberado; e nós também cobramos
caro, porque o hospital custa a pagar. Todos ficam repassando, numa espiral destrutiva.
Não ficamos no vermelho, graças à estrutura enxuta que montei,
informatizada, com vendedores autônomos. Não vemos uma perspectiva
de melhora: quantos hospitais foram inaugurados em São Paulo nos últimos
cinco anos? Sabemos, entretanto, que muitos foram fechados. Uma das soluções
seria exigir administração eficiente nos hospitais, que seriam obrigados
a trabalhar com um orçamento fixo, adequado à sua estrutura e ao
seu histórico de atendimento. Do jeito que está, fica difícil.
O dinheiro da Previdência tem uma tramitação incompreensível.
Por que as faturas são enviadas para o Rio de Janeiro, onde são
processadas, e de lá vão para Brasília? E por que a liberação
do dinheiro segue o mesmo caminho, só que de maneira inversa: vai de Brasília
para o Rio e, de lá, vem para São Paulo e só depois é
distribuído? São duas capitais?
O mercado, não apenas da saúde, ressente-se de mais preparo para
o exercício administrativo. Venho de uma família de empreendedores,
na qual era comum verificar experiências bem-sucedidas no início
passarem, mais tarde, por momentos difíceis. Por isso, tenho-me preparado
tecnicamente nos cursos do SEBRAE/SP e levado empresários amigos para fazer
o mesmo. Estamos tentando juntar o conhecimento prático dos nossos pais
com modernos métodos de gestão."
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